Denise Lapolla de Paula Aguiar Andrade (*)
Direitos humanos são os direitos fundamentais de todas as pessoas, sejam elas mulheres, negros, homossexuais, índios, portadores de deficiência, portadores de HIV, crianças e adolescentes, idosos, policiais, presos, despossuídos e os que têm acesso à riqueza. Todos, enquanto pessoas, devem ser respeitados. (Ivair Augusto Alves dos Santos — Secretaria Nacional dos Direitos Humanos).
Durante muito tempo, as pessoas portadoras de deficiência estiveram em situação de manifesta sujeição, que chegou a criar, até, condição de marginalidade. O movimento reivindicatório teve início quando começou seu processo de autovalorização e elas passaram a se reconhecer como integrantes de um grupo.
O resultado mais importante do Ano Internacional dos Portadores de Deficiência (1981) foi o desenvolvimento do Programa de Ação Mundial para Pessoas com Deficiência, aprovado em 3.12.82 pela Assembléia Geral da ONU, conforme Resolução n. 37/52. O Ano Internacional e o Programa de Ação Mundial destacaram os direitos dessas pessoas às mesmas oportunidades que os demais cidadãos têm, de desfrutar, igualmente, de melhores condições de vida resultantes do desenvolvimento econômico e social.
Muito se tem escrito sobre portadores de deficiência e o respeito necessário à cota que lhes é destinada por lei, nos postos de trabalho. A legitimidade do Ministério Público do Trabalho para a instauração de inquéritos e propositura de ações civis públicas, os compromissos de ajustamento, manifestações jurisprudenciais e doutrinárias foram abordados de forma competente em artigos anteriores, por colegas de outras regionais. Este estudo pretende acrescentar alguns tópicos a esses trabalhos e estimular o debate de uma das prioridades desta nova gestão do Ministério Público do Trabalho. Para o desenvolvimento do tema, faz-se necessária uma visão geral, talvez já conhecida, das normas legais.
LEGISLAÇÃO RELATIVA AO TRABALHO DAS PESSOAS PORTADORAS DE DEFICIÊNCIA
Normas Internacionais:
Recomendação 99 — ( 25.6.55) — relativa à reabilitação profissional das pessoas portadoras de deficiência — aborda princípios e métodos de orientação vocacional e treinamento profissional, meios de aumentar oportunidades de emprego para os portadores de deficiência, emprego protegido, disposições especiais para crianças e jovens portadores de deficiência.
Convenção 111 da OIT — (25.6.58) — promulgada no Brasil pelo Decreto n. 62.150 de 19.1.68 — trata da discriminação em matéria de emprego e profissão:
Art. 1º, I, b — (discriminação compreende) qualquer outra distinção, exclusão ou preferência, que tenha por efeito anular ou reduzir a igualdade de oportunidades, ou tratamento, emprego ou profissão.
Ressalva que a distinção, exclusão ou preferência, com base em qualificações exigidas para determinado emprego não implicam em discriminação.
Recomendação 111 — (25.6.58) — que suplementa a Convenção 111 da OIT sobre discriminação em matéria de emprego e profissão — define discriminação, formula políticas e sua execução.
Resolução XXX/3447 — aprovada pela Assembléia Geral da ONU em 09/12/75, sobre a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes.
Convenção 159 da OIT — (20.6.83) — promulgada pelo Decreto n. 129 de 22.5.91 — trata da política de readaptação profissional e emprego de pessoas portadoras de deficiência. Essa política é baseada no princípio de igualdade de oportunidade entre os trabalhadores portadores de deficiência e os trabalhadores em geral. Medidas especiais positivas que visem garantir essa igualdade de oportunidades não serão consideradas discriminatórias, com relação aos trabalhadores em geral.
Recomendação 168 — (20.6.83) — suplementa a Convenção relativa à reabilitação profissional e emprego de 1983 e a Recomendação relativa à reabilitação profissional de 1955 — prevê a participação comunitária no processo, a reabilitação profissional em áreas rurais, contribuições de empregadores e trabalhadores e dos próprios portadores de deficiência na formulação de políticas específicas.
Constituição Federal:
A atual Carta Magna traz em seu texto as seguintes normas que dizem respeito ao trabalho do portador de deficiência:
Artigo 7º, inciso XXXI — proibindo qualquer discriminação no tocante a salário e critério de admissão do trabalhador portador de deficiência;
Artigo 37, inciso VIII — prevendo que será reservado por lei um percentual de cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência, e definindo critérios de admissão;
Artigo 227 § 1º, II — prevendo a criação de programas de prevenção e atendimento especializados para os portadores de deficiência física, sensorial ou mental, bem como a integração social do adolescente portador de deficiência, mediante treinamento para o trabalho, convivência e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos.
Inclui, ainda, a Carta Maior , como forma de proteção ao portador de deficiência, a norma do art. 203, IV, que confere à assistência social a incumbência de habilitar e reabilitar essa pessoa, promovendo sua integração à vida comunitária. Prevê, também, uma renda mensal vitalícia (inciso V) e oferta de escolas especializadas (art. 208, III) .
Legislação Infraconstitucional:
Lei n. 7.853 de 24.10.89 — dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social e sobre a CORDE (Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência). Aborda a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas e as responsabilidades do Ministério Público. Define como crime, punível com reclusão, obstar, sem justa causa, o acesso de alguém a qualquer cargo público, por motivos derivados de sua deficiência, bem como negar-lhe, pelo mesmo motivo, emprego ou trabalho.
Estatuto da Criança e do Adolescente — Lei n. 8.069 de 13.7.90 — ao adolescente portador de deficiência é assegurado o trabalho protegido, garantindo-se seu treinamento e colocação no mercado de trabalho e também o incentivo à criação de oficinas abrigadas.
Lei n. 8.112 de 11.12.90 — assegura aos portadores de deficiência o direito de se inscreverem em concurso público para provimento de cargos cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadores, reservando-lhes 20% do total das vagas oferecidas no concurso.
Lei n. 8.213 de 24.7.91 — o artigo 93 obriga a empresa com mais de cem empregados a preencher de dois a cinco por cento de seus cargos, com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência habilitadas, sob pena de multa. Esta, a proporção: até 200 empregados — 2%; de 201 a 500 — 3%; de 501 a 1000 — 4%; de 1001 em diante — 5%. A dispensa de trabalhador reabilitado ou de deficiente habilitado, no contrato por prazo determinado de mais de 90 dias, e a imotivada, no contrato por prazo indeterminado, só poderão ocorrer após a contratação de substituto de condição semelhante.
Portaria n. 4.677 do MTPS de 27.7.98 — para os fins do art. 93 da Lei n. 8.213 considera beneficiário reabilitado, todo segurado e dependente vinculado ao Regime Geral de Previdência Social — RGPS — submetido a processo de reabilitação profissional desenvolvido ou homologado pelo INSS e, portador de deficiência, habilitado, aquele não vinculado ao RGPS, que se tenha submetido a processo de reabilitação desenvolvido pelo INSS ou entidade reconhecida legitimamente para esse fim.
Resolução INSS n. 630 de 20.10.98 — estabelece uma sistemática de fiscalização, avaliação e controle das empresas, para assegurar o preenchimento das vagas reservadas, excluído delas o segurado acidentado do trabalho, tendo em vista o art. 118 da Lei n. 8.213/91.
Lavrado o AI e não cumprindo a empresa a obrigação, será comunicado o MPT para as providências cabíveis. No mesmo sentido a Ordem de Serviço Conjunta n. 90 do INSS de 27.10.98.
Portaria GM/MTE n. 772 de 26.8.99 — Prevê a possibilidade de o portador de deficiência, regularmente registrado por entidade assistencial, prestar serviços a empresa, com fins terapêuticos ou de desenvolvimento de capacidade laborativa. Se essa prestação não se estender por mais de seis meses, é reconhecida como treinamento, afastada a relação de emprego, ainda que no âmbito da empresa. Esta Portaria padece de inconstitucionalidade, eis que fere os princípios de igualdade e não discriminação e afronta os direitos sociais constitucionalmente garantidos. Contraria , ainda, expressamente, a legislação que privilegia a inserção direta da pessoa portadora de deficiência na empresa, sem a ocorrência de intermediação.
Lei n. 9.867 de 10.11.99 — Recentemente editada e já objeto de críticas, esta lei dispõe sobre a criação de Cooperativas Sociais, nelas incluídas aquelas formadas por portadores de deficiência. Mais que o objetivo social da lei, discute-se a possibilidade de servirem elas à fraude de direitos trabalhistas de pessoas necessitadas de uma proteção especial.
A legislação no Estado de São Paulo:
A Constituição Estadual (art. 115, IX), sustenta que a lei reservará percentual de cargos e empregos públicos aos portadores de deficiência, garantindo as adaptações necessárias para sua participação nos concursos e definindo os critérios de admissão. Previsão nesse sentido encontra-se também na Lei Orgânica do Município de São Paulo (título IV, capítulo II, art. 99).
E a regulamentação do quanto previsto na Carta estadual, com uma reserva percentual de 5%, está na Lei Complementar n. 683 de 18.9.92.
A definição do portador de deficiência:
É dada pelo Decreto n. 914 de 6.9.93 que instituiu a Política Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência. Em seu art. 3º considera pessoa portadora de deficiência aquela que apresenta, em caráter permanente, perdas ou anormalidades de sua estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica, que gerem incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano.
Em conformidade com o estabelecido pela Câmara Técnica sobre Reserva de Vagas para Pessoas Portadoras de Deficiência da Coordenadoria Nacional para a integração da Pessoa Portadora de Deficiência — CORDE — classificação essa ratificada pela Organização Mundial de Saúde (1990) — enquadram-se como tipos de deficiência as seguintes categorias:
a) deficiência física — comprometimento de função motora (paraplegia, tetraplegia, amputação, paralisia cerebral, etc.);
b) deficiência sensorial — auditiva e visual;
c) deficiência mental — padrões intelectuais reduzidos (dificuldades cognitivas);
d) deficiências múltiplas — concomitância de um ou mais tipos na mesma pessoa.
Acrescente-se como complementação a esta classificação, outra, apresentada pela Organização Mundial de Saúde, na qual se distingue deficiência, incapacidade e desvantagem (impairment, disability and handicap):
“Deficiência : … representa qualquer perda ou anormalidade de estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica. Incapacidade : …. corresponde a qualquer redução ou falta (resultante de uma deficiência) de capacidades para exercer uma atividade de forma, ou dentro dos limites considerados normais para o ser humano. Desvantagem : … representa um impedimento sofrido por um dado indivíduo, resultante de uma deficiência ou de uma incapacidade, que lhe limita ou lhe impede o desempenho de uma atividade considerada normal para esse indivíduo, considerando a idade, o sexo e os fatores sócio-culturais”. (OMS — Classificação Internacional das Deficiências, Incapacidades e Desvantagens, Ministério do Emprego e da Segurança Social, Secretariado Nacional de Reabilitação, Lisboa, 1989).
As estatísticas brasileiras:
Na área de portadores de deficiência os dados disponíveis são parciais e contraditórios. Variam de acordo com a fonte coletora e não sofrem atualizações constantes. A estimativa definida pela Organização Mundial de Saúde/ONU é de 10% para todos os países desenvolvidos e também em desenvolvimento. A prevalência de deficiências no Brasil se apresenta no quadro a seguir:
Tipos de deficiências |
Percentuais |
Mental | 5,0 |
Física | 2,0 |
Auditiva | 1,5 |
Múltiplas | 1,0 |
Visual | 0,5 |
População Total | 10,0 |
Conclui-se, então, que no Brasil, cerca de 15 a 16 milhões de pessoas portam algum tipo de deficiência.
A necessária conscientização do empresariado:
De pouco vale a formação profissional do portador de deficiência, se o empresariado não estiver convencido que as limitações daquele não implicam necessariamente na redução de sua competência. Na verdade, esse trabalhador procura por todos os meios superar a deficiência que o acomete, dedicando-se com mais afinco às suas funções. Rejeita esmolas. Busca no trabalho remunerado condição de dignidade. Em situações específicas pode apresentar uma eficiência maior. No entanto, em época de desemprego e dificuldade econômica é o primeiro a ser despedido e o último a ser contratado. Muitos países têm criado programas para criar postos de trabalho para as pessoas portadoras de deficiência. São oficinas protegidas e de produção, enclaves protegidos, contratação preferencial, sistema de cotas, subvenções a empregadores que capacitam e, posteriormente, contratam trabalhadores com deficiência, cooperativas de e para pessoas com deficiência. Mas as avaliações periódicas que se fizeram desde o início do Programa de Ação Mundial não são muito otimistas, principalmente no que se refere à disposição do empresariado de contratar esse tipo de mão-de-obra. Em artigo recentemente publicado, Tereza Costa Amaral , Superintendente do Instituto Brasileiro de Defesa dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiência analisa: “A competência específica do deficiente deve ser a principal estratégia para seu emprego e pode se tornar ponto de referência para o empresariado. Nesse sentido podemos crer que a eficiência do trabalhador deficiente tem três principais características. Uma, inerente ao fato de desenvolver maior habilidade em determinada função, resultado de um desenvolvimento compensatório alternativo à sua deficiência, como o aprimoramento do tato, no deficiente visual. Outra, relacionada a características oriundas da própria deficiência, como a concentração do surdo em ambiente de poluição sonora de vários tipos. E, por fim, a relativa ao maior significado, para ele, da obtenção e permanência no emprego. São essas características que podem ajudar a tornar atraente sua contratação. A introdução do deficiente no mercado de tr abalho formal traz para a economia a incorporação de sua renda e torna possível ao governo, além de aumentar o contingente de contribuintes, desonerar-se dos encargos previdenciários e assistenciais com ele relacionados”. (Deficientes e o direito ao trabalho, Jornal O Globo, ed. de 3.9.99).
Os Programas de Profissionalização e o encaminhamento ao trabalho:
Entre outros, o PADEF — Programa de Apoio a Pessoas Portadoras de Deficiência no Mercado de Trabalho — da Secretaria de Emprego e Relações do Trabalho em São Paulo atende, orienta e encaminha esses profissionais ao mercado de trabalho. Conscientiza através da mídia os empresários e oferece assessoria técnica na contratação. Apoia aqueles interessados em montar um negócio próprio. Através de seus serviços, o número de profissionais que conseguiram emprego passou de 28, em 1994 (início de atendimento) para 201, entre janeiro e agosto de 1999. Possui um cadastro de cerca de 5.000 PPDs, tendo como maior entrave às suas atividades o fato de o mercado exigir, para o exercício de qualquer função, segundo grau completo.
Paralelamente, a Oficina Estação da Lapa, do Fundo de Solidariedade do Estado, promove cursos profissionalizantes em parceria com o SENAI, com o apoio da Secretaria de Governo e Gestão Estratégica/SP. São inúmeros: iniciação em instalação hidráulica, informática, panificação, montagem de óculos oftálmicos, serviços administrativos, iniciação em reparo e confecção de calçados, encadernação, manutenção e reparo de eletrodomésticos, tricô à mão e à máquina, etc. Destaca-se, ainda, o curso profissionalizante em parceria com a Xerox do Brasil para operador.
Releva destacar, ainda, o trabalho das oficinas protegidas, mantidas por entidades especializadas, algumas reconhecidas como aptas a promover a capacitação pelo MEC. São dirigidas, principalmente, aos portadores de deficiência que não têm condições de se integrar ao mercado de trabalho, em razão da gravidade da lesão que portam. Ali, se lhes oferece oportunidade de convívio social e terapia ocupacional, revertendo para os mesmos parte da renda que se obtém com os pequenos trabalhos que aprendem a fazer. Os portadores de deficiência em nível mais leve, após um período que varia de seis meses a um ano, passam a integrar o mercado de trabalho, após a avaliação procedida pelo INSS.
Considerações finais:
Estudo histórico do colega Ricardo Tadeu Marques da Fonseca — O Trabalho do Portador de Deficiência — Revista Genesis — lembra que, enquanto a Lei das XII Tábuas, na Roma Antiga autorizava os patriarcas a matarem seus filhos defeituosos, e outros povos segregavam essas criaturas em praças, para submetê-las à execração pública, os hindus sempre consideraram os cegos pessoas de sensibilidade interior mais aguçada, justamente pela falta de visão, estimulando o ingresso dos deficientes visuais nas funções religiosas. Há, pois, que se tirar da história a melhor lição, na busca do objetivo comum. E esse objetivo é o de possibilitar às pessoas portadoras de deficiência sua independência e contribuição ativa para a sociedade em que vivem, promovendo-se medidas eficazes para a prevenção e reabilitação da deficiência, garantidas a igualdade de oportunidades em todas as áreas e a plena participação na sociedade em que vivem.
Fonte: Revista do Ministério Público
Autor: Denise Lapolla de Paula Aguiar Andrade – Procuradora do Trabalho, lotada na PRT-2ª Região-SP
Data: 19/03/2000